O casamento

Luis Fernando Veríssimo

— Eu quero ter um casamento tradicional, papai.
            — Sim, minha filha.
            — Exatamente como você!
            — Ótimo.
            — Que música tocaram no casamento de vocês?
            — Não tenho certeza, mas acho que era Mendelssohn. Ou Mendelssohn é o da Marcha Fúnebre? Não, era Mendelssohn mesmo.
            — Mendelssohn, Mendelssohn...  Acho que não conheço. Canta alguma coisa dele aí.
            — Ah, não posso, minha filha. Era o que o órgão tocava em todos os casamentos, no meu tempo.
            — O nosso não vai ter órgão, é claro.
            — Ah, não?
            — Não. Um amigo do Varum tem um sintetizador eletrônico e ele vai tocar na cerimônia.       O Padre Tuco já deixou. Só que esse Mendelssohn, não sei,não...
            — É, acho que no sintetizador não fica bem...
            — Quem sabe alguma coisa do Queen...
            — Quem?
            — O Queen.
            — Não é a Queen?
            — Não. O Queen. E o nome de um conjunto, papai.
            — Ah, certo. O Queen. No sintetizador.
            — Acho que vai ser o maior barato!
            — Só o síntetizador ou...
            — Não. Claro que precisa ter uma guitarra elétrica, um baixo elétrico...
            — Claro. Quer dizer, tudo bem tradicional.
            — Isso.
            — Eu sei que não é da minha conta. Afinal, eu sou só o pai da noiva. Um nada. Na recepção vão me confundir com um garçom. Se ainda me derem gorjeta, tudo bem. Mas alguém pode me dizer por que chamam o nosso futuro genro de Varum?
            — Eu sabia...
            — O quê?
            — Que você já ia começar a implicar com ele.
            — Eu não estou implicando. Eu gosto dele. Eu até o beijaria na testa se ele algum dia tirasse aquele capacete de motoqueiro.
            — Eles nem casaram e você já está implicando.
            — Mas que implicância? É um ótimo rapaz. Tem uma boa cabeça. Pelo menos eu imagino que seja cabeça o que ele tem debaixo do capacete.
            — É um belo rapaz.
            — E eu não sei? Há quase um ano que ele freqüenta a nossa casa diariamente. E como se fosse um filho. Eu às vezes fico esperando que ele me peça uma mesada. Um belo rapaz. Mas por que Varum?
            — E o apelido e pronto.
            — Ah, então é isso. Você explicou tudo. Obrigado.
            — Quanto mais se aproxima o dia do casamento, mais intratável você fica.
            — Desculpe. Eu sou apenas o pai. Um inseto. Me esmigalha. Eu mereço.
            — Aí xará!
            — Oi, Varum, como vai? A sua noiva está se arrumando. Ela já desce.
 Senta aí um pouquinho. Tira o capacete...
            — Essa noivinha...
            — Vocês vão ao cinema?
            — Ela não lhe disse? Nós vamos acampar.
            — Acampar? Só vocês dois?
            — É. Qual é o galho?
            — Não. E que... Sei lá.
            — Já sei o que você tá pensando, cara. Saquei.
            — É! Você sabe como é...
— Saquei. Você está pensando que só nós dois, no meio do mato, pode pintar um lance.
            — No mínimo isso. Um lance. Até dois.
            — Mas qualé, xará. Não tem disso não. Está em falta. Oi,gatona!
            — Oi, Varum. O que é que você e papai estão conversando?
            — Não, o velho aí tá preocupado que nós dois, acampados sozinhos, pode pintar um lance. Eu já disse que não tem disso.
            — Oi, papai. Não tem perigo nenhum. Nem cobra. E qualquer coisa
o Varum me defende. Eu Jane, ele Tarzan.
            — Só não dou o meu grito para proteger os cristais.
            — Vamos?
            — Vamlá?
            — Mas... Vocês vão acampar de motocicleta?
            — De motoca, cara. Vá-rum, vá-rum.
            — Descobri por que ele se chama Varum.
            — O quê? Você quer alguma coisa?
            — Disse que descobri por que ele se chama Varum.
            — Você me acordou só para dizer isto?
            — Você estava dormindo?
            — É o que eu costumo fazer às três da manhã, todos os dias. Você não dormiu?
            — Ainda não. Sabe como é que ele chama ela? Gatona. Por um estranho processo de degeneração genética, eu sou pai de uma gatona.
Varum e Gatona, a dupla dinâmica, está neste momento, no meio do mato.
            — Então é isso que está preocupando você?
            — E não é para preocupar? Você também não devia estar dormindo. A gatona é sua também.
            — Mas não tem perigo nenhum!
            — Como, não tem perigo? Um homem e uma mulher,  dentro de uma tenda, no meio do mato?
            — O que é que pode acontecer?
            — Se você já esqueceu, é melhor ir dormir mesmo.
            — Não tem perigo nenhum. O máximo que pode acontecer é entrar um sapo na tenda.
            — Ou você está falando em linguagem figurada ou eu é que estou ficando louco.
            — Vai dormir.
            — Gatona. Minha própria filha...
            — Você também tinha um apelido pra mim, durante o nosso noivado.
            — Eu prefiro não ouvir.
            — Você me chamava de Formosura. Pensando bem, você também tinha um apelido.
            — Por favor. Reminiscências não. Comi faz pouco.
            — Kid Gordini. Você não se lembra? Você e o seu Gordini envenenado.
            — Tão envenenado que morreu, nas minhas mãos. Um dia levei num mecânico  e disse que a bateria estava ruim. Ele disse que a bateria estava boa, o resto do carro é que tinha que ser trocado.
            — Viu só? E você se queixa do Varum. Kid Gordini!
            — Mas eu nunca levei você para o mato no meu Gordini.
            — Não levou porque meu pai matava você.
            — Hmmmm.
            — “Hmmmm” o quê?
            — Você me deu uma idéia. Assassinato...
            — Não seja bobo.
            — Um golpe bem aplicado... Na cabeça não porque ela está sempre bem protegida. Sim. Kid Gordini ataca outra vez...
            — O que você tem é ciúme.
            Nisso tudo, tem uma coisa que me preocupa acima de tudo que é o que me tira o sono.
            — O quê?
            — Será que ele tira o capacete para dormir?
            — Bom dia.
            — Bom dia.
            — Eu sou o pai da noiva. Da Maria Helena.
            — Maria Helena... Ah, a Gatona!
            — Essa.
            — Que prazer. Alguma dúvida sobre a cerimônia?
            — Não, Padre Osni. E que...
            — Pode me chamar de Tuco. E como me chamam.
            — Não, Padre Tuco. E que a Ga... A Maria Helena me disse que ela
pretende entrar dançando na igreja. O conjunto toca  um rock e a noiva entra dançando, é isso?
            — É. Um rock suave. Não é rock pauleira.
            — Ah, não é rock pauleira. Sei. Bom, isto muda tudo.
            — Muitos jovens estão fazendo isto. A noiva entra dançando e na saída
os dois saem dançando. O senhor sabe, a Igreja hoje está diferente.  É isto que está atraindo os jovens de volta à Igreja. Temos que evoluir com os tempos.
            — Claro. Mas, Padre Osni...
            — Tuco.
            — Padre Tuco, tem uma coisa. O pai da noiva também tem que dançar?
            — Bom, isto depende do senhor. O senhor dança?
            — Agora não, obrigado. Quer dizer, dançava. Até ganhei concurso de chá-chá-chá. Acho que você ainda não era nascido. Mas estou meio fora de forma e...
            — Ensaie, ensaie.
            — Certo.
            — Peça para a Gatona ensaiar com o senhor.
            — Claro.
            — Não é rock pauleira.
            — Certo. Um roquezinho suave.
            Quem sabe um chá-chá-chá? Não. Esquece, esquece.
            — Você está nervoso, papai?
            — Um pouco. E se a gente adiasse o casamento? Eu preciso uma
semana a mais de ensaio. Só uma semana.
            — Eu estou bonita?
            — Linda. Quando estiver pronta vai ficar uma beleza.
            — Mas eu estou pronta.
            — Você vai se casar assim?
            — Você não gosta?
            — É... diferente, né? Essa coroa de flores, os pés descalços...
            — Não é um barato?

            — Um brinde, xará!
            — Um brinde, Varum.
            — Você estava um estouro entrando naquela igreja.  Parecia um bailarino profissional.
            — Pois é. Improvisei uns passos. Acho que me sai bem.
            — Muito bem!
            — Não sei se você sabe que eu fui o rei do chá-chá-chá.
            — Do quê?
            — Chá-chá-chá. Uma dança que havia. Você ainda não era nascido.
            — Bota tempo nisso.
            — Eu tinha um Gordini envenenado. Tão envenenado que morreu. Um dia levei no...
            — Tinha um quê?
            — Gordini. Você sabe. Um carro. Varum, varum.
            — Ah.
            — Esquece.
            — Um brinde ao sogro bailarino.
            — Um brinde. Eu sei que vocês vão ser muito felizes.
            — O que é que você achou da minha beca, cara?
            — Sensacional. Nunca tinha visto um noivo de macacão vermelho, antes. Gostei. Confesso que quando entrei na igreja e vi você lá no altar, de capacete...
            — Vacilou.
            — Vacilei. Mas aí vi que o Padre Tuco estava de boné e pensei, tudo bem. Temos que evoluir com os tempos. E ataquei meu rock suave.


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