A borboleta preta
Machado de Assis
No
dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto
uma borboleta, tão negra como a outra, e muito maior do que ela. Lembrou-me o
caso da véspera, e ri-me; entrei logo a pensar na filha de Dona Eusébia, no
susto que tivera, e na dignidade que, apesar dele, soube conservar. A
borboleta, depois de esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa.
Sacudi-a, ela foi pousar na vidraça; e, porque eu sacudisse de novo, saiu dali
e veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite. O
gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha um certo ar
escarninho, que me aborreceu muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando
lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelão dos
nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.
Não caiu morta; ainda torcia o corpo
e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui
depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns
segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.
- Também por que diabo não era ela
azul? disse eu comigo.
E esta reflexão, - uma das mais
profundas que se tem feito, desde a invenção das borboletas, - me consolou do
malefício, e me reconciliou comigo mesmo. Deixei-me estar a contemplar o
cadáver, com alguma simpatia, confesso. Imaginei que ela saíra do mato,
almoçada e feliz. A manhã era linda. Veio por ali fora, modesta e negra,
espairecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um céu azul, que é
sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha janela, entra e dá comigo.
Suponho que nunca teria visto um homem; não sabia, portanto, o que era o homem;
descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha
olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disse consigo:
Este é provavelmente o inventor das borboletas. A ideia subjugou-a, aterrou-a;
mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradar
ao seu criador era beijá-lo na testa, e beijou-me na testa. Quando enxotada por
mim, foi pousar na vidraça, viu dali o retrato de meu pai, e não é impossível
que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do inventor das
borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia.
Pois um golpe de toalha rematou a
aventura. Não lhe valeu a imensidade azul, nem a alegria das flores, nem a
pompa das folhas verdes, contra uma toalha de rosto, dois palmos de linho cru.
Vejam como é bom ser superior às borboletas! Porque, é justo dizê-lo, se ela
fosse azul, ou cor de laranja, não teria mais segura a vida; não era impossível
que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos. Não era. Esta
última ideia restituiu-me a consolação; uni o dedo grande ao polegar, despedi
um piparote e o cadáver caiu no jardim. Era tempo; aí vinham já as próvidas
formigas... Não, volto à primeira ideia; creio que para ela era melhor ter
nascido azul.
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