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O mergulhador

Vinícius de Moraes E il naufragar m'è dolce in questo mare Leopardi Como, dentro do mar, libérrimos, os polvos No líquido luar tateiam a coisa a vir Assim, dentro do ar, meus lentos dedos loucos Passeiam no teu corpo a te buscar-te a ti. És a princípio doce plasma submarino Flutuando ao sabor de súbitas correntes Frias e quentes, substância estranha e íntima De teor irreal e tato transparente. Depois teu seio é a infância, duna mansa Cheia de alísios, marco espectral do istmo Onde, a nudez vestida só de lua branca Eu ia mergulhar minha face já triste. Nele soterro a mão como a cravei criança Noutro seio de que me lembro, também pleno... Mas não sei... o ímpeto deste é doído e espanta O outro me dava vida, este me mete medo. Toco uma a uma as doces glândulas em feixes Com a sensação que tinha ao mergulhar os dedos Na massa cintilante e convulsa de peixes Retiradas ao mar nas grandes redes pensas. E ponho-me a cismar… - mul...

Poemas de Gonçalves Dias

CANÇÃO DO EXÍLIO Kennsl du das Land, wo die Citronen, blühen, Im dunkeln die Gold-Orangen gliihen,Kcnnst du es wohl? - Dahin, dahin! Môcht ich... ziehn. GOETHE     Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais fores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar – sozinho, à noite – Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu’inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá. Coimbra – Julho 1843 O CANTO DO GUERREIRO I Aqui na foresta Dos ventos batida, Façanhas de bravos Não geram escravos, Que est...

Vício na fala - Oswald de Andrade

Para dizerem milho dizem mio Para melhor dizem mió Para pior pió Para telha dizem teia Para telhado dizem teiado E vão fazendo telhados

Ao espelho - Rubem Braga

Tu, que não foste belo nem perfeito, Ora te vejo (e tu me vês) com tédio E vã melancolia, contrafeito, Como a um condenado sem remédio. . Evitas meu olhar inquiridor Fugindo, aos meus dois olhos vermelhos, Porque já te falece algum valor Para enfrentar o tédio dos espelhos. . Ontem bebeste em demasia, certo, Mas não foi, convenhamos, a primeira Nem a milésima vez que hás bebido. . Volta portanto a cara, vê de perto A cara, tua cara verdadeira, Oh Braga envelhecido, envilecido.

O amor - Mário de Sá-Carneiro

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MOTE Amor é chama que mata, Sorriso que desfalece, Madeixa que desata, Perfume que esvaece. (popular) GLOSAS Amor é chama que mata, Dizem todos com razão, É mal do coração E com ele se endoidece. O amor é um sorriso Sorriso que desfalece. Madeixa que se desata Denominam-no também. O amor não é um bem: Quem ama sempre padece. O amor é um perfume Perfume que se esvaece. Mário de Sá-Carneiro

As Árvores e o Marchado

Um homem foi à floresta e pediu às árvores, para que estas lhe doassem um cabo para o seu machado novo. O conselho das árvores então decide concordar com o seu pedido, e lhe dá uma jovem árvore para este fim. E logo que o homem coloca o novo cabo no machado, começa furiosamente a usá-lo, e em pouco tempo, já tinha derrubado com seus fortes golpes, as maiores e mais nobres árvores daquela floresta. Um velho Carvalho, observando a destruição à sua volta, comenta desolado com um Cedro seu vizinho: O primeiro passo significou a perdição de todas nós. Se tivéssemos considerado os direitos daquela jovem árvore, também teríamos preservado os nossos, e poderíamos ficar de pé ainda por muitos anos. Autor: Esopo Moral da História: Quem menospreza seu semelhante, não deve se surpreender se um dia lhe fizerem a mesma coisa.

O Socorro - Millôr Fernandes

Ele foi cavando, cavando, cavando, pois sua profissão – coveiro – era cavar demais. Mas, de repente, na distração do ofício que amava, percebeu que cavara demais. Tentou sair da cova e não conseguiu. Levantou o olhar e viu que sozinho não conseguiria sair. Gritou. Ninguém atendeu. Gritou mais forte. Ninguém veio. Enrouqueceu de gritar, cansou de esbravejar, desistiu com a noite. Sentou-se no fundo da cova, desesperado. A noite chegou, subiu, fez-se o silêncio das horas tardas. Bateu o frio da madrugada e, na noite escura, não se ouvia um som humano, embora o cemitério estivesse cheio dos pipilos e coaxares naturais dos matos. Só pouco depois da meia-noite é que lá vieram uns passos. Deitado no fundo da cova, o coveiro gritou. Os passos se aproximaram. Uma cabeça ébria apareceu lá em cima, perguntou o que havia: - “O que é que há?”. O coveiro então gritou desesperado: - “Tire-me daqui, por favor. Estou com um frio terrível!”. - “Mas coitado!”, condoeu-se o bêbado. “Tem toda razã...

No meio do caminho - Carlos Drummond de Andrade

No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra Tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra.

Não passou - Carlos Drummond de Andrade

Passou? Minúsculas eternidades deglutidas por mínimos relógios ressoam na mente cavernosa. Não, ninguém morreu, ninguém foi infeliz. A mão- a tua mão, nossas mãos- rugosas, têm o antigo calor de quando éramos vivos. Éramos? Hoje somos mais vivos do que nunca. Mentira, estarmos sós. Nada, que eu sinta, passa realmente. É tudo ilusão de ter passado.

As sem razões do amor - Carlos Drummond de Andrade

Eu te amo porque te amo. Não precisas ser amante, e nem sempre sabes sê-lo. Eu te amo porque te amo. Amor é estado de graça e com amor não se paga. Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no elipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários. Eu te amo porque não amo bastante ou demais a mim. Porque amor não se troca, não se conjuga nem se ama. Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo. Amor é primo da morte, e da morte vencedor, por mais que o matem (e matam) a cada instante de amor.

O homem nu - Fernando Sabino

Ao acordar, disse para a mulher: — Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum. — Explique isso ao homem — ponderou a mulher. — Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago. Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. ...

O ERÊ - Toni Garrido

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Pra entender o erê Tem que tá moleque Tem que conquistar alguém E a consciência leve Há semanas em que tudo vem Há semanas que é seca pura Há selvagens que são do bem A sequência do filme muda Milhões de anos-luz podem curar O que alguns segundos na vida podem representar O erê, a criança sincera convicção Fazendo a vida com o que o sol nos traz Você sabe o sentimento não trai Para entender o erê Tem que tá moleque Tem que conquistar alguém E a consciência leve Pare e pense no que já se viu Pense e sinta o que já se fez O mundo visto de uma janela Pelos olhos de uma criança. GARRIDO, Toni; DA GAMA; LAZÃO; FARIAS, Bino; VILHENA, Bernardo. Cidade Negra. Rio de Janeiro: SONY MUSIC: 1996.

A onda - Manuel Bandeira

a onda anda aonde anda a onda? a onda ainda ainda onda ainda anda aonde? aonde? a onda a onda.

Vozes d'África - Castro Alves

Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes Embuçado nos céus? Há dois mil anos te mandei meu grito, Que embalde desde então corre o infinito... Onde estás, Senhor Deus?... Qual Prometeu tu me amarraste um dia Do deserto na rubra penedia — Infinito: galé! ... Por abutre — me deste o sol candente, E a terra de Suez — foi a corrente Que me ligaste ao pé... O cavalo estafado do Beduíno Sob a vergasta tomba ressupino E morre no areal. Minha garupa sangra, a dor poreja, Quando o chicote do simoun dardeja O teu braço eternal. Minhas irmãs são belas, são ditosas... Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas Dos haréns do Sultão. Ou no dorso dos brancos elefantes Embala-se coberta de brilhantes Nas plagas do Hindustão. Por tenda tem os cimos do Himalaia... Ganges amoroso beija a praia Coberta de corais ... A brisa de Misora o céu inflama; E ela dorme nos templos do Deus Brama, — Pagodes colossais... A Europa é semp...

As duas ilhas - Castro Alves

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Quando à noite — às horas mortas —O silêncio e a solidão — Sob o dossel do infinito —Dormem do mar n'amplidão, Vê-se, por cima dos mares, Rasgando o teto dos ares Dois gigantescos perfis... Olhando por sobre as vagas, Atentos, longínquas plagas Ao clarear dos fuzis. Quem os vê, olha espantado E a sós murmura: "0 que é? Ai! que atalaias gigantes, São essas além de pé?!..." Adamastor de granito Co'a testa roça o infinito E a barba molha no mar; É de pedra a cabeleira Sacudind'a onda ligeira Faz de medo recuar... São — dous marcos miliários, Que Deus nas ondas plantou. Dous rochedos, onde o mundo Dous Prometeus amarrou!... — Acolá... (Não tenhas medo!) É Santa Helena — o rochedo Desse Titã, que foi rei!... — Ali... (Não feches os olhos!...) Ali... aqueles abrolhos São a ilha de Jersey!... São eles — os dous gigantes No século de pigmeus. São eles — que a majestade Arrancam da mão de Deus. — Este concentra na fro...

Tragédia no lar - Castro Alves

Na Senzala, úmida, estreita, Brilha a chama da candeia, No sapé se esgueira o vento. E a luz da fogueira ateia. Junto ao fogo, uma africana, Sentada, o filho embalando, Vai lentamente cantando Uma tirana indolente, Repassada de aflição. E o menino ri contente... Mas treme e grita gelado, Se nas palhas do telhado Ruge o vento do sertão. Se o canto pára um momento, Chora a criança imprudente ... Mas continua a cantiga ... E ri sem ver o tormento Daquele amargo cantar. Ai! triste, que enxugas rindo Os prantos que vão caindo Do fundo, materno olhar, E nas mãozinhas brilhantes Agitas como diamantes Os prantos do seu pensar ... E voz como um soluço lacerante Continua a cantar: "Eu sou como a garça triste "Que mora à beira do rio, "As orvalhadas da noite "Me fazem tremer de frio. "Me fazem tremer de frio "Como os juncos da lagoa; "Feliz da araponga errante "Que é livre, que livre voa. "Que é livre, que li...

As palavras - Arilton Bronze

As palavras são maleáveis O contexto pode provar Se a pessoa não for sensível Jamais perceberá. Elas mudam constantemente Cada um pode perceber Depende do significado Que você quer conhecer. Sensível pode ser maldoso Depende da brincadeira Cirurgia conhecimento Ciência cabe na algibeira. Tragédia - experiência Até difícil pode parecer Faça a experiência Que comida balão pode ser. Termino a cirurgia Mais medroso que antes O balão está gostoso Pelos menos nesse instante.

Metade pássaro - Murilo Mendes

A mulher do fim do mundo Dá de comer às roseiras, Dá de beber às estátuas, Dá de sonhar aos poetas. A mulher do fim do mundo Chama a luz com assobio, Faz a virgem virar pedra, Cura a tempestade, Desvia o curso dos sonhos, Escreve cartas aos rios, Me puxa do sono eterno Para os seus braços que cantam. De O visionário (1941)