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Coisas da Terra

Todas as coisas de que falo estão na cidade entre o céu e a terra.  São todas elas coisas perecíveis e eternas como o teu riso a palavra solidária minha mão aberta ou este esquecido cheiro de cabelo que volta e acende sua flama inesperada no coração de maio. Todas as coisas de que falo são de carne como o verão e o salário.  Mortalmente inseridas no tempo, estão dispersas como o ar no mercado, nas oficinas, nas ruas, nos hotéis de viagem. São coisas, todas elas, cotidianas, como bocas e mãos, sonhos, greves, denúncias, acidentes de trabalho e do amor. Coisas, de que falam os jornais, às vezes tão rudes às vezes tão escuras que mesmo a poesia as ilumina com dificuldade. Mas é nelas que te vejo pulsando, mundo novo, ainda em estado de soluços e esperança.   Ferreira Gullar

Bicho urbano - Ferreira Gullar

Se disser que prefiro morar em Pirapemas ou em outra qualquer pequena cidade do país estou mentindo ainda que lá se possa de manhã lavar o rosto no orvalho e o pão preserve aquele branco sabor de alvorada Não não quero viver em Pirapemas Já me perdi Como tantos outros brasileiros me perdi, necessito deste rebuliço de gente pelas ruas e meu coração queima gasolina (da comum) como qualquer outro motor urbano A natureza me assusta. Com seus matos sombrios suas águas suas aves são como aparições me assusta quase tanto quanto esse abismo de gases e de estrelas aberto sob minha cabeça. Do livro: "Toda poesia - 1950-1980", Civilização Brasileira, 1980, RJ

Traduzir-se - Ferreira Gullar

Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém: fundo sem fundo. Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão. Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira. Uma parte de mim almoça e janta: outra parte se espanta. Uma parte de mim é permanente: outra parte se sabe de repente. Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem. Traduzir-se uma parte na outra parte - que é uma questão de vida ou morte - será arte?