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A Flor e a Náusea

Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta. Melancolias, mercadorias, espreitam-me. Devo seguir até o enjoo? Posso, sem armas, revoltar-me? Olhos sujos no relógio da torre: Não, o tempo não chegou de completa justiça. O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera. O tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse. Em vão me tento explicar, os muros são surdos. Sob a pele das palavras há cifras e códigos. O sol consola os doentes e não os renova. As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase. Vomitar este tédio sobre a cidade. Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado. Nenhuma carta escrita nem recebida. Todos os homens voltam para casa. Estão menos livres mas levam jornais e soletram o mundo, sabendo que o perdem. Crimes da terra, como perdoá-los? Tomei parte em muitos, outros escondi. Alguns achei belos, foram publicados. Crimes suaves, que ajudam...

Poema que aconteceu

Nenhum desejo neste domingo nenhum problema nesta vida o mundo parou de repente os homens ficaram calados domingo sem fim nem começo. A mão que escreve este poema não sabe o que está escrevendo mas é possível que se soubesse nem ligasse. ANDRADE, Carlos Drummond de, Sentimento do mundo . São Paulo: Record, 1999. Leia o poema e responda: 1. Segundo o texto, o que daria vida a esse domingo sem nenhuma perspectiva de mudança? 2. Que versos, na segunda estrofe, apresentam conjunções subordinativas? 3. Retire do texto as orações que apresentam conjunções subordinativas.

O Pão do Diabo

       Espalhou-se no bairro a notícia de que Ludovico, ao partir o pão quando jantava, teria exclamado:       -Este é realmente o pão que o diabo amassou.      O padeiro Romualdo sentiu-se ofendido em sua honra profissional e foi pedir satisfação.  Ludovico não só confirmou o que dissera, como aduziu:        - É também o diabo que fabrica a sua farinha, Romualdo. Fique alerta e verá.       O padeiro não dormiu aquela noite. De madrugada, pé antepé, entrou na padaria e surpreendeu um estranho ser que retirava os pães do forno, fazendo-os desaparecer e substituindo-os por outros que eram amassados na hora, feitos de uma farinha especial, com vago cheiro de enxofre.        Petrificado de espanto, Romualdo nada pôde fazer. Mesmo porque logo em seguida caiu duro no chão, onde foi encontrado ao amanhecer, e pouco ...

O homem: as viagens

 Carlos Drummond   O homem, bicho da terra tão pequeno   Chateia-se na terra   Lugar de muita miséria e pouca diversão,   Faz um foguete, uma cápsula, um módulo   Toca para a lua   Desce cauteloso na lua   Pisa na lua   Planta bandeirola na lua   Experimenta a lua   Coloniza a lua   Civiliza a lua   Humaniza a lua.     Lua humanizada: tão igual à terra.   O homem chateia-se na lua.   Vamos para marte - ordena a suas máquinas.   Elas obedecem, o homem desce em Marte   Pisa em Marte   Experimenta   Coloniza   Civiliza   Humaniza marte com engenho e arte.   Marte humanizado, que lugar quadrado.   Vamos a outra parte?   Claro - diz o engenho   Sofisticado e dócil.   Vamos a vênus.   O homem põe o pé em Vênus,   Vê o visto - é isto?   Idem   Ide...

O Pão do Diabo

             Espalhou-se no bairro a notícia de que Ludovico, ao partir o pão quando jantava, teria exclamado: -Este é realmente o pão que o diabo amassou. O padeiro Romualdo sentiu-se ofendido em sua honra profissional e foi pedir satisfação. Ludovico não só confirmou o que dissera, como aduziu: - É também o diabo que fabrica a sua farinha, Romualdo. Fique alerta e verá. O padeiro não dormiu aquela noite. De madrugada, pé antepé, entrou na padaria e surpreendeu um estranho ser que retirava os pães do forno, fazendo-os desaparecer e substituindo-os por outros que eram amassados na hora, feitos de uma farinha especial, com vago cheiro de enxofre. Petrificado de espanto, Romualdo nada pôde fazer. Mesmo porque logo em seguida caiu duro no chão, onde foi encontrado ao amanhecer, e pouco a pouco recuperou a consciência. Seu primeiro gesto foi pedir um pão e cheirá-lo. Cheirava natural, mas o padeiro não ousou prová-lo. Fech...

José - Carlos Drummond de Andrade

E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, você? você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? e agora, José? Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José? E agora, José? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio – e agora? Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora? Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse... Mas você não morre, você é duro, José! Sozin...

Mãos dadas - Carlos Drummond

Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes, a vida presente.