ATO ÚNICO
Cenário:
Um sótão. À direita uma janela dando
para fora de onde se avista o céu. No meio, encostado à parede do fundo, um
baú. Uma cadeira de balanço. Cabides onde se veem, pendurados, velhas roupas e
chapéus. Coisas de marinha. Cordas, redes. O retrato velado do capitão Bonança.
À esquerda, a entrada do sótão.
Ao abrir o pano, a Senhora Fantasma
faz tricô, balançando-se na cadeira, que range compassadamente. Pluft, o
fantasminha, brinca com um barco. Depois larga o barco e pega uma velha boneca
de pano. Observa-a por algum tempo.
PLUFT - Mamãe!
MÃE - O
que é, Pluft?
PLUFT - (Sempre
com a boneca de pano) Mamãe, gente existe?
MÃE - Claro,
Pluft. Claro que gente existe.
PLUFT - Mamãe,
tenho tanto medo de gente! (Larga a boneca.)
MÃE - Bobagem,
Pluft.
PLUFT - Ontem
passou lá embaixo, perto do mar, e eu vi.
MÃE - Viu
o que, Pluft?
PLUFT - Vi
gente, mamãe. Só pode ser. Três.
MÃE - E
você teve medo?
PLUFT - Muito,
mamãe.
MÃE - Você
é bobo, Pluft. Gente é que tem medo de
fantasma e não fantasma que tem medo de gente.
PLUFT - Mas
eu tenho.
MÃE - Se seu
pai fosse vivo, Pluft, você apanharia uma surra com esse medo bobo. Qualquer
dia destes eu vou te levar ao mundo para vê-los de perto.
PLUFT - Ao
mundo, mamãe?!!
MÃE - É,
ao mundo. Lá embaixo, na cidade...
PLUFT - (Muito
agitado vai até a janela. Pausa.) Não, não, não. Eu não acredito em gente, pronto...
MÃE - Vai
sim, e acabará com estas bobagens. São histórias demais que o tio Gerúndio conta
para você. (Pluft corre até um canto e apanha um chapéu de almirante.)
PLUFT - Olha,
mamãe, olha o que eu descobri! O que é isto?!
MÃE -
Isto tio Gerúndio trouxe do mar. (Pluft fora de cena continua a descobrir coisas,
que vai jogando em cena: panos, roupas, chapéus etc.)
PLUFT - Por
que tio Gerúndio não trabalha mais no mar, hem, mamã?
MÃE - Porque
o mar perdeu a graça para ele...
PLUFT - (Sempre
remexendo, descobre um espartilho de mulher) E isto, mamãe, (aparecendo) que é
isso? Ele trouxe isto também do mar? (Coloca o espartilho na cabeça e passeia
em volta da mãe.)
MÃE - Pluft,
chega de remexer tanto nas coisas [...]
PLUFT - (Larga
o espartilho de mulher no chão e
passeia na cena
à procura do
que fazer) Vamos brincar, tá bem?
Finge que eu sou gente. (Veste-se de fraque e de cartola.)
MÃE - (Sem
vê-lo) Chega de fazer desordem, meu filho.
Você acaba acordando tio Gerúndio. (Ela olha para o baú.)
PLUFT - (Pé
ante pé, chega por detrás da cadeira da mãe
e grita) Uuuuh! (A mãe leva um grande susto e deixa
cair as agulhas e o tricô) Eu sabia! Eu sabia que você também tinha medo de
gente. Peguei! Peguei! Peguei mamãe com medo de gente... Peguei mãe com medo de
gente!...
MÃE - (Procurando
de gatinhas os óculos e o tricô) Pluft, você quer apanhar? Como é que
eu posso
acabar o meu tricô para os fantasminhas pobres, se você não me deixa trabalhar?
(A mãe volta à cadeira bufando e Pluft volta à janela pensativo.)
MACHADO,
Maria Clara. Pluft, o fantasminha e o
Dragão verde. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 15-20.
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