Eis a verdade: — o que sustenta, o
que nutre, o que dinamiza o futebol é a vaidade. Vejamos o juiz. É um
crucificado vitalício. Seja ele o próprio Abrahão Lincoln, o próprio
Robespierre, e a massa ignara e ululante o chamará de gatuno. Dirá alguém que
ele percebe um bom salário. Nem assim, nem assim. Não há dinheiro que o
compense e redima, nenhum ordenado que o lave, que o purifique. E, no entanto,
ele não renuncia às suas funções nem por um decreto. Pergunto: — por que esta
obstinação? Amigos, a vaidade o encouraça, a vaidade o torna inexpugnável, a
vaidade o ensurdece para as 200 mil bocas que urram: — “Ladrão! Ladrão!
Ladrão!”.
O mesmo acontece com o craque, com o
paredro, com o técnico. O futebol os projeta e pendura nas manchetes, e esta
publicidade histérica constitui uma delícia suprema. E ninguém é modesto,
ninguém. Qualquer jogador, ou qualquer dirigente, ou qualquer técnico tem a
torva e a vaidade de uma prima-dona gagá, cheia de pelancas e de varizes. Eu
disse que ninguém é modesto no futebol. Em tempo retifico: — há, sim, uma única
e escassa figura, que, no meio do cabotinismo frenético e geral, constitui uma
exceção franciscana. Refiro-me ao esquecido, ao desprezado, ao doce massagista.
A imprensa e o rádio falam de tudo,
numa sádica e minuciosa cobertura. Jamais, porém, um locutor, um repórter
lembrou-se de mencionar a atuação de um massagista. Ele não merece, ao menos,
uma citação desprimorosa. Um bandeirinha consegue ser vaiado. Não o massagista,
que não inspira nada: — nem amor, nem ódio. Dir-se-ia que o gandula é mais
importante. E, no entanto, apesar da humildade sufocante de suas funções, o
massagista pode ser uma dessas figuras capitais, que resolvem o destino das
batalhas.
Para não ir muito longe, citarei o
exemplo de Mário Américo. Tudo na sua figura de ex-boxeur justifica uma
simpatia universal, a começar pela cabeça minuciosamente raspada, até o último
vestígio de cabelo. Esse coco lustroso e negro já o distingue dos demais, em
violento destaque. Pois bem: — simples e humilde massagista, Mário Américo
influi mais nos fatos do campo, na evolução das partidas, que muito jogador,
muito paredro, muito técnico. E não é com massagens platônicas, não é fazendo
seu métier, que o homem tem decidido vários jogos. Mário Américo age pelo riso,
apenas pelo riso.
Sim, amigos: — quando ele se abre,
quando se escancara, quando se alarga no seu riso incoercível, não há força que
o contenha e que lhe resista. Mário Américo sério é um pobre ser, duma
esplendorosa nulidade como todos nós. Mas a gargalhada o transfigura, dá-lhe
uma nova dimensão racial, uma grandeza inesperada e terrível, o equipara a
certos negros da ficção e da vida: — Paul Robeson, José do Patrocínio, Otelo,
imperador Jones etc.
Sobretudo nas pelejas
internacionais, tudo, nesse homem de cor, é um riso só: — riem os lábios, as
gengivas, os dentes, as ventas e até a careca retinta. Foi o que aconteceu no
Brasil x Argentina, em Montevidéu. Luizinho deu um corte num adversário de
forma tão espetacular que Mário Américo não resistiu: — nunca o seu riso foi
tão largo, nunca o seu riso teve, como naquele momento, uma dilatação de parto.
E aquela cara que ria alucinou os nossos adversários. Como vencer uma
gargalhada cósmica? Se pudessem, os argentinos teriam atravessado aquele riso
com uma lança, como nas gravuras de são Jorge.
Nelson Rodrigues. À sombra das chuteiras imortais. São
Paulo, Companhia das Letras, 1994.
Comentários
Postar um comentário