Nova York transforma mendigo em trabalhador



Nova York está mais limpa, segura e com menos mendigos nas ruas. Atrai turistas como nunca. Conseguir quarto em hotel virou suplício para quem não fez reserva com antecedência.
            Por trás do rejuvenescimento da cidade está a mais abrangente ofensiva americana para tirar desempregados e mendigos das ruas. Eles ganham empregos que não exigem qualificação e recebem uma média de US$ 700 mensais para, entre outras funções, limpar parques e ruas.
Já estão empregadas 34 mil pessoas, pagas pela prefeitura. Muitas delas, em vez de ficarem mendigando nos parques, são agora vigias, devidamente uniformizados e respeitados pela comunidade.
            É apenas o começo. A cidade estima que, como a nova legislação social cortou benefícios aos desempregados, vá ter de colocar 120 mil pessoas (repetindo, 120 mil) em sua folha de pagamento, executando tarefas rudimentares.
            Essas vagas são imaginadas como um período de transição até que consigam voltar ou entrar nas empresas. É um plano complexo, a intenção vai além de apenas doar empregos. Prevê cursos de reciclagem e educação profissional; tratamento contra drogas e alcoolismo; as mães solteiras ou descasadas teriam automaticamente creches para seus filhos enquanto trabalham.
            Há um detalhe significativo desse projeto: não foi concebido pela esquerda, mas pela direita. No caso, o prefeito Rudolph Giuliani. Quebrando longa tradição, ele pôs a cidade nas mãos dos republicanos; às avessas, é um impacto semelhante ao de Luiza Erundina ter ganhado, em 1988, a Prefeitura de São Paulo. O projeto reafirma Nova York como o mais importante laboratório social do planeta. A cidade tem verbas de Primeiro Mundo e problemas de Terceiro Mundo; dessa combinação brotam as mais variadas e férteis experiências, a começar da queda da criminalidade.
Com a globalização, descobertas tecnológicas e queda de fronteiras, nem as regiões mais ricas estão livres dos efeitos devastadores do desemprego.
Empregos são dizimados em ritmo alucinante. Outros são criados. O problema é que a transição vai deixando fantasmas pelo caminho, gente que não consegue se habilitar para novas funções. Sabemos hoje que apenas crescimento econômico não resolve exclusão social.
Temos, então, de decidir se preferimos que essa pessoa vire mendigo, ladrão ou traficante, jogando seu filho no círculo vicioso da miséria. Ou vire um cidadão.
            Nova York sugere que é mais sábio mantê-los na folha de pagamento, ganhando US$ 700 por mês, do que gastando US$ 2.000 para alimentá-los na cadeia, sacrificando a paz na cidade.
            Na semana passada foi divulgada pesquisa oficial mostrando que aumentou o número de pessoas que moram nas ruas em São Paulo. Perfeito indicador da crise social brasileira, da incompetência pública e, apesar de notáveis esforços isolados, da falta de empenho comunitário.
Segundo a pesquisa, 5.334 indivíduos moram nas ruas; 359 crianças, 141 delas sozinhas. Pergunta óbvia: será que a cidade mais rica da América Latina não consegue arrumar um teto para essa gente?
O Brasil já tem inflação de Primeiro Mundo. Motivo de justificável orgulho. É preciso que adquira também mentalidade de Primeiro Mundo, parando com essa mania de autopiedade e derrotismo estéril, em meio ao descaso social. Quem não quer morar numa cidade mais segura, sem trapos humanos rastejando pelas calçadas?
            Um dos traços do subdesenvolvimento é o brasileiro não se sentir dono de seu país. Cidadania, só dentro de casa. As ruas são dos outros.
Os americanos investem, por ano, US$ 150 bilhões em filantropia. Na semana passada foi divulgada com destaque a lista dos maiores doadores dos EUA. Brilham nomes como George Soros, o mais controvertido especulador financeiro. Apenas num projeto para ajudar imigrantes deu US$ 50 milhões. Distribui, por ano, US$ 350 milhões. Para aprimorar o curso de ciência da computação em Harvard, Bill Gates deu US$ 15 milhões; aliás, ele já prometeu doar toda sua fortuna, avaliada em US$ 18 bilhões.
Tem um lado de esperteza mercadológica, claro. E também de status: uma boa doação aqui é algo parecido a ostentar Brasil haras e casa no campo ou, em alguns casos, insinuar conta na Suíça. Mas não é só isso; há também o sentimento de que, por serem elite, são mais responsáveis pelo país.
            Quem é antenado no Brasil já percebeu, mesmo intuitivamente, os novos tempos. Dois publicitários de sucesso, Nizan Guanaes e Washington Olivetto, resolveram colocar a mão no bolso e ajudar projetos de educação pública.
            Olivetto ajuda a canalizar recursos para projetos que educam crianças de rua; sem contar que sua agência criou uma das mais interessantes campanhas para conscientização sobre a importância do ensino básico.
Nizan Guanaes resolveu adotar a escola pública de seu bairro, alegando que mais gente na sala de aula significa menos gente na cadeia. Se mais empresários pensassem assim, São Paulo seria mais parecida com Nova York e menos com Nova Déli.

Gilberto Dimenstein. Folha de São Paulo, 15/12/1996.


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