Maresia

             



                Não havia espelho na barraca. Nenhum, nem desses pequenos, de bolsa. E eu sentia minhas que minhas pernas cresciam, exibidas no short de bolinha.
            A Bete saiu, ainda me perguntou: "Você não vem?" Inventei que ia pentear o cabelo, qualquer bobagem. O que queria mesmo era chorar. A camiseta era larga - tudo bem. O tênis escondia aquele pé redondo, horroroso. E as pernas? O que a gente faz com pernas, se está de short?
            Sempre me falaram que quando a gente não é bonita tem de ser inteligente. É bem mais fácil ser bonita, é verdade: era só olhar a Marinha, ou a Renata - elas podiam ter acabado a aula de Educação Física, elas chegavam debaixo de chuva na escola, tomavam sorvete escorrendo pelo queixo - e continuavam bonitas. Eu? Ah! Três horas de cabeleireiro, quilômetros de butique e a roupa caía mal, o cabelo continuava espetado.
            E gorda. Isso sim, era o pior de tudo no mundo. Eu enchia a bochecha pra falar: goooorda. A própria palavra "gorda", redonda, imensa, me encarando e acusando dentro do espelho. Era isso, dona Gabi: quinze anos, 1,62m, e i peso... nem dava pra falar. E se a gente é feia, tem de usar outro truque. Pelo menos, o que sempre me falaram: ser inteligente. Primeira aluna da classe. Interesse por leitura, jornal. Fazer os trabalhos mais criativos, participar do Grêmio do colégio. O que também acabava trazendo as coisas chatas: recitar poesia no 7 de Setembro; representar os alunos em festa da Diretoria; ser exibida pela mãe como um bicho raro e no meio da festa atacar de poesia nos convidados.
            Não, eu não queria ser assim. Talvez apenas quisesse ser bonita. Isso, eu achava impossível. Ou quisesse ser feliz. E pra dizer a verdade, com quinze anos, sem namorado, muitas aulas, uma mãe que insistia em me tratar como criança, minha maior felicidade seria um sundae cheio de frutas e caramelo.Até o dia do piquenique. Foi o Chen que me procurou, dizendo que a turma tinha resolvido ir á praia no domingo. O piquenique. A praia. Meus amigos. E as pernas de fora, no short.
            Dentro da barraca, o calor era maior. Uma sauna. Senti que logo, logo ia estar com aquela mancha de suor debaixo do braço. Dona Gabi. Deixa de onda!! São seus amigos, todo mundo sabe que você é gorda. E nem ligam. Gostam de você mesmo sendo gorda, e daí? Ataquei um canto da unha do mindinho e puxei com os dentes. Ainda essa, voltar a roer unha? Já não havia largado o vício? Todo mundo te conhece. Todo mundo. Mas ele não.
            Foi uma guerra convencer a mãe e as mães dos amigos. Afinal, éramos oito gatinhos e gatinhas solitários, dia inteiro numa praia deserta. Claro que não íamos dormir fora, qualquer sugestão nesse sentido mataria alguns familiares do coração. Mas só o fato de que estaríamos so-zi-nhos... Nosso grupo. Éramos amigos, o pessoal que fazia uma revista literária na escola, os mais inteligentes, os mais legais...
            Mas ele também foi. Era o que dirigia um dos carros, aliás. Primo da Judite, tinha feito 18 anos, estava no cursinho. Lindo. Não me lembro de ter visto alguém tão bonito - com o corpo atlético, loiro, até os pelinhos das pernas eram loiros. Ele dirigiu até Caraguá de short, e naquele sufoco de quem senta aqui e ali, eu sobrei bem do seu lado, no banco da frente.
            E agora. Todo mundo rindo e brincando, do lado de fora. A barraca parecia banho turco - não vou sair. Não vou. Nem que a Judite, o Chen, a Rogéria, o Carlos venham pedir. Nem que...
            - Você não vem mais, Gabi? Eu queria tirar fotografia.
            Era ele. Sorriso e olhos brilhantes. Avermelhei inteira, acho que as minhas coxas também ficaram "ruborizadas", como aparece nos textos de literatura. Se é que isso é possível! Mas ficaram. E ele me colocou a mão no ombro, quando saímos da barraca, e eu fui andando feito um fantasma, como se meu corpo tivesse ficado em alguma outra parte do universo, até o grupo de amigos fazendo pose pra foto.
            Apesar do sol, a água ainda estava muito gelada. Só o Júlio - mas o Júlio é exibido! - se atreveu a tirar a camisa e correr para o mar, voltando arrepiado. Eu me ofereci pra fazer os sanduíches. E ele veio ajudar. Senti que os olhos dele vinham mais para mim do que para a maionese, mas que coisa! Ele não via que todas as garotas lá eram bonitas, eram magras, por que ele precisava me vigiar assim?
            Estendi o pão com maionese para ele, seus dedos encostaram nos meus e lá se foi o pão melecado misturando-se na areia.
            -Pão com areia não dá! Deixa que eu jogo fora.
            Ele devia estar percebendo tudo. Eu suava, meu cabelo grudando na testa. Finalmente, apareceu a Rogéria pra me ajudar e o Chen pegou o violão.
            Eram umas quatro da tarde, barriga cheia e muito papo depois, quando o Júlio sugeriu um passeio. A maioria preferia a preguiça de olhar o céu e aquele mar exibido no seu azul. Carlos disse que ia junto. Ele também se levantou. Olhou para mim:
            - Você não vem?
            Fomos. E era engraçado, nossos passos indo devagar, num ritmo parecido, nossos cabelos mexidos pelo vento. Júlio e Carlos, parecendo dois moleques, se jogando areia e ameaçando dar tapa um no outro. Nós não: éramos - o que era muito, muito estranho - um casal. E meu coração foi-se acalmando, nossas mãos tão perto uma da outra. O pessoal bem longe, apenas nossa barraca, explodindo no seu vermelho, a praia sendo só da gente.
            Júlio lembrou que seu time estava jogando. Carlos lembrando que o rádio do carro estava joia. Voltaram correndo e se estapeando até a barraca. Agora sim. Apenas eu e ele.
            Suspirei fundo. Se não se é bonita que se seja inteligente. Ia começar a falar: procurei na memória o assunto mais, mais interessante, a frase mais, mais inteligente - sobre o que? Música, arte, política? A eleição pra prefeito? O novo disco do Arrigo Barnabé?
            O beijo. Fiquei de olho arregalado, assim sentindo o cheiro de sua pele, os braços dele em volta de mim. E depois do susto, meu coração começou foi a bater mansinho, num ritmo parecido com o dele, e veio outro e outro beijo.
            - Por que eu? - algo assim eu comecei a dizer quando fomos voltando de mãos dadas, para a barraca. - Tanta menina bonita, vai dizer que eu...
            O sorriso dele vinha muito divertido. As sombras da gente, compridas, com as mãos dadas. O sol, que era uma moeda pegando fogo, já se encostando na água.
            - Vamos dizer que eu adoro menina de perna grossa. Assim você fica contente?
            E demos outro e mais outro beijo, antes de encontrarmos o pessoal e antes que aquela tarde maravilhosa
terminasse.


KUPSTAS, Márcia. Eu te gosto, você me gosta. 7. ed. São Paulo, Atual, 1988. p. 3-7.

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