Macacos me mordam – Fernando Sabino
Morador
de uma cidade do interior de Minas me deu conhecimento do fato: diz ele que há
tempos um cientista local passou telegrama para outro cientista, amigo seu,
residente em Manaus:
“Obséquio
providenciar remessa 1 ou 2 macacos”.
Necessitava
ele de fazer algumas inoculações em macaco, animal difícil de ser encontrado na
localidade. Um belo dia, já esquecido da encomenda, recebeu resposta:
“Providenciada
remessa 600 restante seguirá oportunamente”.
Não
entendeu bem: o amigo lhe arranjara apenas um macaco, por seiscentos cruzeiros?
Ficou aguardando, e só foi entender quando o chefe da estação veio
comunicar-lhe:
–
Professor, chegou sua encomenda. Aqui esta o conhecimento para o senhor
assinar. Foi preciso trem especial.
E
acrescentou:
–
É macaco que não acaba mais!
Ficou
aterrado: o telégrafo errara ao transmitir “1 ou 2 macacos”, transmitira “1002
macacos”! E na estação, para começar, nada menos que seiscentos macacos
engaiolados aguardavam desembaraço. Telegrafou imediatamente ao amigo:
“Pelo
amor Santa Maria Virgem suspenda remessa restante”.
Ia para a estação, mas a população local,
surpreendida pelo acontecimento, já se concentrava ali, curiosa, entusiasmada,
apreensiva:
–
O que será que o professor pretende com tanto macaco?
E
a macacada, impaciente e faminta, aguardava destino, empilhada em gaiolas na
plataforma da estação, divertindo a todos com suas macaquices. O professor não
teve coragem de aproximar-se: fugiu correndo, foi se esconder no fundo de sua
casa. A noite, porém, o agente da estação veio desentocá-la:
–
Professor, pelo amor de Deus, vem dar um jeito naquilo.
O
professor pediu tempo para pensar. O homem coçava a cabeça, perplexo:
–
Professor, nós todos temos muita estima e muito respeito pelo senhor, mas tenha
paciência: se o senhor não der um jeito eu vou mandar trazer a macacada para
sua casa.
–
Para minha casa? Você está maluco?
O
impasse prolongou-se ao longo de todo o dia seguinte. Na cidade não se
comentava outra coisa, e os ditos espirituosos circulavam:
–
Macacos me mordam!
–
Macaco, olha o teu rabo.
A
noite, como o professor não se mexesse, o chefe da estação convocou as pessoas
gradas do lugar: o prefeito, o delegado, o juiz.
–
Mandar de volta por conta da prefeitura?
–
A prefeitura não tem dinheiro para gastar com macacos.
–
O professor muito menos.
–
Já estão famintos, não sei o que fazer.
–
Matar? Mas isso seria uma carnificina!
–
Nada disso – ponderou o delegado: – Dizem que macaco guisado é um bom prato…
Ao
fim do segundo dia, o agente da estação, por conta própria, não tendo outra
alternativa, apelou para o último recurso – o trágico, o espantoso recurso da
pátria em perigo: soltar os macacos. E como os habitantes de Leide durante o
cerco espanhol, soltando os diques do mar do Norte para salvar a honra da
Holanda, mandou soltar os macacos. E os macacos foram soltos! E o mar do Norte,
alegre e sinistro, saltou para a terra com a braveza dos touros que saltam para
a arena quando se lhes abre o curral – ou como macacos saltam para a cidade
quando se lhes abre a gaiola. Porque a macacada, alegre e sinistra,
imediatamente invadiu a cidade em pânico. Naquela noite ninguém teve sossego.
Quando a mocinha distraída se despia para dormir, um macaco estendeu o braço da
janela e arrebatou-lhe a camisola. No botequim, os fregueses da cerveja
habitual deram com seu lugar ocupado por macacos. A bilheteira do cinema,
horrorizada, desmaiara, ante o braço cabeludo que se estendeu através das
grades para adquirir uma entrada. A partida de sinuca foi interrompida porque
de súbito despregou-se do teto ao pano verde um macaco e fugiu com a bola 7. Ai
de quem descascasse preguiçosamente uma banana! Antes de levá-la à boca um braço
de macaco saído não se sabia de onde a surrupiava. No barbeiro, houve um
momento em que não restava uma só cadeira vaga: todas ocupadas com macacos. E
houve também o célebre macaco em casa de louças, nem um só pires restou
intacto. A noite passou assim, em polvorosa. Caçadores improvisados se
dispuseram a acabar com a praga – e mais de um esquivo notívago correu risco de
levar um tiro nas suas esquivanças, confundido com macaco dentro da noite.
No
dia seguinte a situação perdurava: não houve aula na escola pública, porque os
macacos foram os primeiros a chegar. O sino da igreja badalava freneticamente
desde cedo, apinhado de macacos, ainda que o vigário houvesse por bem suspender
a missa naquela manhã, porque havia macaco escondido até na sacristia.
Depois,
com o correr dos dias e dos macacos, eles foram escasseando. Alguns morreram de
fome ou caçados implacavelmente. Outros fugiram para a floresta, outros
acabaram mesmo comidos ao jantar, guisados como sugerira o delegado, nas mesas
mais pobres. Um ou outro surgia ainda de vez em quando num telhado, esquálido,
assustado, com bandeirinha branca pedindo paz à molecada que o perseguia com
pedras. Durante muito tempo, porém, sua presença perturbadora pairou no ar da
cidade. O professor não chegou a servir-se de nenhum para suas experiências.
Caíra doente, nunca mais pusera os pés na rua, embora durante algum tempo
muitos insistissem em visitá-la pela janela.
Vai
um dia, a cidade já em paz, o professor recebe outro telegrama de seu amigo em
Manaus:
“Seguiu
resto encomenda”.
Não
teve dúvidas: assim mesmo doente, saiu de casa imediatamente, direto para a
estação, abandonou a cidade para sempre, e nunca mais se ouviu falar nele.
Fernando Sabino. In Para gostar de ler, vol. 1. São Paulo. Ática, 1994.
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