Regras para usuários de bonde – por Machado de Assis
Ocorreu-me compor umas certas regras para uso
dos que frequentam os bonds. O desenvolvimento que tem tido entre nós este meio
de locomoção, essencialmente democrático, exige que ele não seja deixado ao
puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns extratos
do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta artigos. Vão apenas
dez.
Art.
I - Dos Encatarroados - Os encatarroados podem entrar nos bonds, com a condição
de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro,
quatro. Quando a tosse for tão teimosa
que não permita esta limitação, os encatarroados têm dous alvitres: - ou irem a
pé, que é bom exercício, ou meterem-se na cama. Também podem ir tossir para o
diabo que os carregue. Os encatarroados que estiverem nas extremidades dos
bancos devem escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no próprio bond,
salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçônico, vocação etc., etc.
Art.
II - Da Posição Das Pernas - As pernas devem trazer-se de modo que não
constranjam os passageiros do mesmo banco. Não se proíbem formalmente as pernas
abertas, mas com a condição de pagar os outros lugares, e fazê-los ocupar por
meninas pobres ou viúvas desvalidas mediante uma pequena gratificação.
Art.
III - Da Leitura dos Jornais - Cada vez que um passageiro abrir a folha que
estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem
levar-lhes os chapéus; também não é bonito encostá-lo no passageiro da frente.
Art.
IV - Dos Quebra-Queixos - É permitido o uso dos quebra-queixos em duas
circunstâncias: - a primeira quando não for ninguém no bond, e a segunda ao
descer.
Art.
V - Dos Amoladores - Toda a pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios
íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro
escolhido para uma tal confidencia, se ele é assaz cristão e resignado. No caso
afirmativo, perguntar-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de pontapés;
a pessoa deve imediatamente pespegá-los. No caso, aliás extraordinário e quase
absurdo, de que o passageiro prefira a narração, o proponente deve fazê-la
minuciosamente, carregando muito nas circunstâncias mais triviais, repetindo os
ditos, pisando e repisando as cousas, de modo que o paciente jure aos seus
deuses não cair em outra.
Art.
VI - Dos Perdigotos - Reserva-se o banco da frente para a emissão dos
perdigotos, salvo as ocasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco.
Também podem emitir-se na plataforma de traz, indo o passageiro ao pé do
condutor, e a cara voltada para a rua.
Art.
VII - Das Conversas - Quando duas pessoas, sentadas a distancia, quiserem dizer
alguma coisa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte
palavras, e, em todo o caso, sem alusões maliciosas, principalmente se houver
senhoras.
Art.
VIII - Das Pessoas Com Morrinha - As pessoas que tiverem morrinha podem
participar dos bonds indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um
lado para outro. Será melhor que morem em rua por onde eles passem, porque
então podem vê-los mesmo da janela.
Art.
IX - Da Passagem Às Senhoras - Quando alguma senhora entrar, deve o passageiro
da ponta levantar-se e dar passagem, não só porque é incômodo para ele ficar
sentado, apertando as pernas, como porque é uma grande má criação.
Art.
X - Do Pagamento - Quando o passageiro estiver ao pé de um conhecido, e, ao vir
o condutor receber as passagens, notar que o conhecido procura o dinheiro com
certa vagareza ou dificuldade, deve imediatamente pagar por ele: é evidente
que, se ele quisesse pagar, teria tirado o dinheiro mais depressa.
ASSIS, Machado de. Crônicas escolhidas. Organizado pela folha de S. Paulo. São Paulo:
Ática, 1994.
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