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Mostrando postagens de novembro, 2009

Magro, de Olhos Azuis - Bocage

Magro, de olhos azuis, carão moreno, Bem servido de pés, meão na altura, Triste de facha, o mesmo de figura, Nariz alto no meio, e não pequeno; Incapaz de assistir num só terreno, Mais propenso ao furor do que à ternura, Bebendo em níveas mãos por taça escura De zelos infernais letal veneno; Devoto incensador de mil deidades (Digo, de moças mil) num só momento, E somente no altar amando os frades; Eis Bocage, em quem luz algum talento; Saíram dele mesmo estas verdades Num dia em que se achou mais pachorrento.

Águas - Cyro de Mattos

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Águas do rio Cachoeira havia o fragor de espumas havia o verde nas vagas o lume do tempo sem faca o coração lúcido das águas haveria outras águas de perau e rocha as marcas decididamente acumuladas no leito do mistério a natureza impõe a deságua: no mar de meu sono triste sonho que me acordem essas águas MATTOS, Cyro de. Vinte poemas do rio . Ilhéus: Editus, 2001

Diante do Rio - Cyro de Mattos

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Mancha ao invés de espuma perau ao invés de remanso queda ao invés de mergulho dúvida ao invés de certeza lua muda ao invés de ave branca nessa tarde de brilho longínquo maduros janeiros em tuas águas ainda que me ocultes em tua fábula há em tua flor de água-pé a proposta livre da vida, canção de aurora riberinha no meu nado cristalino e afoito. MATTOS, Cyro de. Vinte poemas do rio . Ilhéus: Editus, 2001

As duas ilhas - Castro Alves

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Quando à noite — às horas mortas —O silêncio e a solidão — Sob o dossel do infinito —Dormem do mar n'amplidão, Vê-se, por cima dos mares, Rasgando o teto dos ares Dois gigantescos perfis... Olhando por sobre as vagas, Atentos, longínquas plagas Ao clarear dos fuzis. Quem os vê, olha espantado E a sós murmura: "0 que é? Ai! que atalaias gigantes, São essas além de pé?!..." Adamastor de granito Co'a testa roça o infinito E a barba molha no mar; É de pedra a cabeleira Sacudind'a onda ligeira Faz de medo recuar... São — dous marcos miliários, Que Deus nas ondas plantou. Dous rochedos, onde o mundo Dous Prometeus amarrou!... — Acolá... (Não tenhas medo!) É Santa Helena — o rochedo Desse Titã, que foi rei!... — Ali... (Não feches os olhos!...) Ali... aqueles abrolhos São a ilha de Jersey!... São eles — os dous gigantes No século de pigmeus. São eles — que a majestade Arrancam da mão de Deus. — Este concentra na fro...

As duas flores - Castro Alves

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São duas flores unidas São duas rosas nascidas Talvez do mesmo arrebol, Vivendo,no mesmo galho, Da mesma gota de orvalho, Do mesmo raio de sol. Unidas, bem como as penas das duas asas pequenas De um passarinho do céu... Como um casal de rolinhas, Como a tribo de andorinhas Da tarde no frouxo véu. Unidas, bem como os prantos, Que em parelha descem tantos Das profundezas do olhar... Como o suspiro e o desgosto, Como as covinhas do rosto, Como as estrelas do mar. Unidas... Ai quem pudera Numa eterna primavera Viver, qual vive esta flor. Juntar as rosas da vida Na rama verde e florida, Na verde rama do amor!

Soneto - Luís de Camões

Quem diz que Amor é falso ou enganoso, ligeiro, ingrato, vão, desconhecido, Sem falta lhe terá bem merecido Que lhe seja cruel ou rigoroso. Amor é brando, é doce e é piedoso; Quem o contrário diz não seja crido: Seja por cego e apaixonado tido, E aos homens e inda aos deuses odioso. Se males faz Amor, em mi se vêem; Em mim mostrando todo o seu rigor, Ao mundo quis mostrar quanto podia. Mas todas suas iras são de amor; Todos estes seus males são um bem, Que eu por todo outro bem não trocaria.

Quando eu morrer - Castro Alves

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Quando eu morrer... não lancem meu cadáver No fosso de um sombrio cemitério... Odeio o mausoléu que espera o morto Como o viajante desse hotel funéreo. Corre nas veias negras desse mármore Não sei que sangue vil de messalina, A cova, num bocejo indiferente, Abre ao primeiro o boca libertina. Ei-la a nau do sepulcro — o cemitério... Que povo estranho no porão profundo! Emigrantes sombrios que se embarcam Para as plagas sem fim do outro mundo. Tem os fogos — errantes — por santelmo. Tem por velame — os panos do sudário... Por mastro — o vulto esguio do cipreste, Por gaivotas — o mocho funerário... Ali ninguém se firma a um braço amigo Do inverno pelas lúgubres noitadas... No tombadilho indiferentes chocam-se E nas trevas esbarram-se as ossadas... Como deve custar ao pobre morto Ver as plagas da vida além perdidas, Sem ver o branco fumo de seus lares Levantar-se por entre as avenidas!... Oh! perguntai aos frios esqueletos Por que não têm o c...

Anúncio de João Alves

Figura o anúncio em um jornal que o amigo me mandou, e esta assim redigido: À procura de uma besta. - A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escura com os seguintes característicos: calçada e ferrada de todos os membros locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas seções em consequência de um golpe, cuja extensão pode alcançar de 4 a 6 centímetros, produzido por jumento. Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comércio, é muito mansa e boa de sela, e tudo me induz ao cálculo de que foi roubada, assim que hão sido falhas todas as indagações. Quem, pois, apreendê-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos notícia exata ministrar, será razoavelmente remunerado.Itambé do Mato Dentro, 19 de novembro de 1899. João Alves Júnior. Cinquenta e cinco anos depois, prezado João Alves Júnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido, já é pó no pó. E tu mesmo, se não estou...

Este Natal - Carlos Drummond de Andrade

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— Este Natal anda muito perigoso — concluiu João Brandão, ao ver dois PM travarem pelos braços o robusto Papai Noel, que tentava fugir, e o conduzirem a trancos e barrancos para o Distrito. Se até Papai Noel é considerado fora-da-lei, que não acontecerá com a gente? Logo lhe explicaram que aquele era um falso velhinho, conspurcador das vestes amáveis. Em vez de dar presentes, tomava­os das lojas onde a multidão se comprime, e os vendedores, afobados com a clientela, não podem prestar atenção a tais manobras. Fora apanhado em flagrante, ao furtar um rádio transistor, e teria de despir a fantasia. — De qualquer maneira, este Natal é fogo — voltou a ponderar Brandão, pois se os ladrões se disfarçam em Papai Noel, que garantia tem a gente diante de um bispo, de um almirante, de um astronauta? Pode ser de verdade, pode ser de mentira; acabou-se a confiança no próximo. De resto, é isso mesmo que o jornal recomenda: "Ne...

Tragédia no lar - Castro Alves

Na Senzala, úmida, estreita, Brilha a chama da candeia, No sapé se esgueira o vento. E a luz da fogueira ateia. Junto ao fogo, uma africana, Sentada, o filho embalando, Vai lentamente cantando Uma tirana indolente, Repassada de aflição. E o menino ri contente... Mas treme e grita gelado, Se nas palhas do telhado Ruge o vento do sertão. Se o canto pára um momento, Chora a criança imprudente ... Mas continua a cantiga ... E ri sem ver o tormento Daquele amargo cantar. Ai! triste, que enxugas rindo Os prantos que vão caindo Do fundo, materno olhar, E nas mãozinhas brilhantes Agitas como diamantes Os prantos do seu pensar ... E voz como um soluço lacerante Continua a cantar: "Eu sou como a garça triste "Que mora à beira do rio, "As orvalhadas da noite "Me fazem tremer de frio. "Me fazem tremer de frio "Como os juncos da lagoa; "Feliz da araponga errante "Que é livre, que livre voa. "Que é livre, que li...

A última crônica - Fernando Sabino

"A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, ...

Um cão apenas - Cecília Meireles

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          Subidos, de ânimo leve e descansado passo, os quarenta degraus do jardim – plantas em flor, de cada lado; borboletas incertas; salpicos de luz no granito – eis-me no patamar. E a meus pés, no áspero capacho de coco, à frescura da cal do pórtico, um cãozinho triste interrompe o seu sono, levanta a cabeça e fita-me. É um cãozinho doente, com todo o corpo ferido; gastas, as mechas brancas do pelo; o olhar dorido e profundo, com esse lustro de lágrimas que há nos olhos das pessoas muito idosas. Com grande esforço acaba de levantar-se.Eu não lhe digo nada; não faço nenhum gesto. Envergonha-me haver interrompido o seu sono. Se ele estava feliz ali, eu não devia ter chegado. Já lhe faltavam tantas coisas, que ao menos dormisse: também os animais devem esquecer, enquanto dormem...Eis, porém, levantava-se e olhava-me. Levantava-se com a dificuldade dos enfermos graves: acomodando as patas da frente, arrastando o resto do corpo, sempre c...

A mulher do vizinho - Fernando Sabino

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Na rua onde mora (ou morava) um conhecido e antipático General do nosso Exército, morava (ou mora) também um sueco cujos filhos passavam o dia jogando futebol com bola de meia. Ora, às vezes acontecia cair a bola no carro do General e um dia o General acabou perdendo a paciência, pediu ao delegado do bairro para dar um jeito nos filhos do vizinho. O delegado resolveu passar uma chamada no homem e intimou-o a comparecer à delegacia. O sueco era tímido, meio descuidado no vestir e pelo aspecto não parecia ser um importante industrial, dono de grande fábrica de papel (ou coisa parecida), que realmente ele o era. Obedecendo à intimação recebida, compareceu em companhia da mulher à delegacia e ouviu calado tudo o que o delegado tinha a lhe dizer. O delegado tinha a lhe dizer o seguinte: - O senhor pensa que só porque o deixaram morar neste país pode logo ir fazendo o que quer? Nunca ouviu falar num troço chamado autoridades constituídas? Não sabe que tem de con...