Postagens

Mostrando postagens de 2009

Poema de Natal - Vinícius de Moraes

Para isso fomos feitos: Para lembrar e ser lembrados, Para chorar e fazer chorar, Para enterrar os nossos mortos - Por isso temos braços longos para os adeuses, Mãos para colher o que foi dado, Dedos para cavar a terra. Assim será a nossa vida; Uma tarde sempre a esquecer, Uma estrêla a se apagar na treva, Um caminho entre dois túmulos - Por isso precisamos velar, Falar baixo, pisar leve, ver A noite dormir em silêncio. Não há muito que dizer: Uma canção sôbre um berço, Um verso, talvez, de amor, Uma prece por quem se vai - Mas que essa hora não esqueça E que por ela os nossos corações Se deixem, graves e simples. Pois para isso fomos feitos: Para a esperança no milagre, Para a participação da poesia, Para ver a face da morte - De repente, nunca mais esperaremos... Hoje a noite é jovem; da morte apenas Nascemos, imensamente.

O Peru de Natal - Mário de Andrade

O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres. Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto ...

Erro de português - Oswald de Andrade

Quando o português chegou Debaixo de uma bruta chuva Vestiu o índio Que pena! Fosse uma manhã de sol O índio tinha despido O português.

A onda - Manuel Bandeira

a onda anda aonde anda a onda? a onda ainda ainda onda ainda anda aonde? aonde? a onda a onda.

Soneto de separação - Vinícius de Moraes

De repente do riso fez-se o pranto Silencioso e branco como a bruma E das bocas unidas fez-se a espuma E das mãos espalmadas fez-se o espanto De repente da calma fez-se o vento Que dos olhos desfez a última chama E da paixão fez-se o pressentimento E do momento imóvel fez-se o drama De repente não mais que de repente Fez-se de triste o que se fez amante E de sozinho o que se fez contente Fez-se do amigo próximo, distante Fez-se da vida uma aventura errante De repente, não mais que de repente.

O bicho - Manuel Bandeira

Vi ontem um bicho Na imundice do pátio Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa; Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem.

Ode ao burguês - Mário de Andrade

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel o burguês-burguês! A digestão bem-feita de São Paulo! O homem-curva! O homem-nádegas! O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, é sempre um cauteloso pouco-a-pouco! Eu insulto as aristocracias cautelosas! Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros! Que vivem dentro de muros sem pulos, e gemem sangue de alguns mil-réis fracos para dizerem que as filhas da senhora falam o francês e tocam os "Printemps" com as unhas! Eu insulto o burguês-funesto! O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições! Fora os que algarismam os amanhãs! Olha a vida dos nossos setembros! Fará Sol? Choverá? Arlequinal! Mas à chuva dos rosaiso êxtase fará sempre Sol! Morte à gordura! Morte às adiposidades cerebrais! Morte ao burguês-mensal! Ao burguês-cinema! Ao burguês-tiburi! Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano! "— Ai, filha, que te darei pelos teus anos? — Um colar... — Conto e quinhentos!!! Más nós morre...

Essa negra fulô - Jorge de Lima

Essa negra fulô Ora, se deu que chegou (isso já faz muito tempo) no bangüê dum meu avô uma negra bonitinha, chamada negra Fulô. Essa negra Fulô! Essa negra Fulô! Ó Fulô! Ó Fulô! (Era a fala da Sinhá) — Vai forrar a minha cama, pentear os meus cabelos, vem ajudar a tirar a minha roupa, Fulô! Essa negra Fulô! Essa negrinha Fulô! ficou logo pra mucama pra vigiar a Sinhá, pra engomar pro Sinhô! Essa negra Fulô! Essa negra Fulô! Ó Fulô! Ó Fulô! (Era a fala da Sinhá) vem me ajudar, ó Fulô, vem abanar o meu corpo que eu estou suada, Fulô! vem coçar minha coceira, vem me catar cafuné, vem balançar minha rede, vem me contar uma história, que eu estou com sono, Fulô! Essa negra Fulô! "Era um dia uma princesa que vivia num castelo que possuía um vestido com os peixinhos do mar. Entrou na perna dum pato saiu na perna dum pinto o Rei-Sinhô me mandou que vos contasse mais cinco". Essa negra Fulô! Essa negra Fulô! Ó Fulô! Ó Fulô! Vai bot...

Atualização da Carta de Pero Vaz de Caminha

Olá meu amado Rei, aqui quem fala é o Pero Vaz. Está me ouvindo bem? Peguei emprestado o celular de um nativo aqui da nova terra. Tudo bem, o Capitão Pedro está lhe mandando um abraço. Chegamos na terça, 21 de abril, mas deixei para ligar no Domingo porque a ligação é mais barata. É aqui tem dessas coisas. Os nativos ficaram espantados com a nossa chegada por mar, não achavam que éramos Deuses, Majestade. Acharam que éramos loucos de pisar em um mar tão sujo. -- A ligação está boa? Pois é, essa terra é engraçada. Tem telefonia celular digital, automóveis importados, acesso gratuito à Internet mas ainda tem gente que morre de malária e está cheia de criança barriguda de tanto verme. É meio complicado explicar. -- Se já encontramos o chefe? -- Olha Rei, tá meio complicado. Aqui tem muito cacique para pouco índio. Logo que chegamos a Porto Seguro tinha um cacique lá que dizia que fazia chover, que mandava prender e soltar quem ele quisesse. É, um cacique bravo mesmo... Mais pa...

Casa no campo

Imagem
Eu quero uma casa no campo Onde eu possa compor muitos rocks rurais E tenha somente a certeza Dos amigos do peito e nada mais Eu quero uma casa no campo Onde eu possa ficar do tamanho da paz E tenha somente a certeza Dos limites do corpo e nada mais Eu quero carneiros e cabras pastando Solenes no meu jardim Eu quero o silêncio das línguas cansadas Eu quero a esperança de óculos E um filho de cuca legal Eu quero plantar e colher com a mão, A pimenta e o sal Eu quero uma casa no campo Do tamanho ideal, pau a pique e sapê Onde eu possa plantar meus amigos Meus discos e livros e nada mais (Zé Rodrix / Tavito. Do disco Elis vive.)

No dia em que o gato falou - Millôr Fernandes

Imagem
Era uma vez uma dama gentil e senil que tinha um gato siamês. Gato siamês! Gato de raça, de bom-tom, de filiação, de ânimo cristão. Lindo gato, gato terno, amigo, pertencente a uma classe quase extinta de antigos deuses egípcios. Este gato só faltava falar. Manso e inteligente, seu olhar era humano. Mas falar não falava. E sua dona, triste, todo dia passava uma ou duas horas repetindo sílabas e palavras para ele, na esperança de que um dia aquela inteligência que via em seu olhar explodisse em sons compreensivos e claros. Mas, nada! A dama gentil e senil era, naturalmente, incapaz de compreender o fenômeno. Tanto mais que ali mesmo à sua frente, preso a um poleiro de ferro, estava um outro ser, também animal, inferior até ao gato, pois era somente uma pobre ave, mas que falava! Falava mesmo muito mais do que devia! Um papagaio que falava pelas tripas do Judas. Curiosa natureza, pensava a mulher, que fazia um gato quase humano, sem fala, e um papagaio cretino mas parlapa...

Fita Verde no Cabelo - Guimarães Rosa

(ROSA, Guimarães in Fita Verde no Cabelo) "HAVIA UMA ALDEIA em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, meninos e meninas que nasciam e cresciam. Todos com juízo, suficientemente, menos uma menininha, a que por enquanto. Aquela um dia, saiu de lá, com uma fita verde inventada no cabelo. Sua mãe mandara-a com um cesto e um pote, à avó, que a amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia. Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era uma vez. O pote continuava doce em calda, e o cesto estava vazio, que para buscar franboesa. Daí, que, indo no atravessar o bosque, viu só os lenhadores que por lá lenhavam, mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham exterminado o lobo. Então, ela mesma era quem se dizia: “Vou à vovó com cesto e pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a mamãe me mandou.” A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele moinho, que a gente pensa que vê, e das horas,...

Um Apólogo - Machado de Assis

Imagem
Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha: — Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo? — Deixe-me, senhora. — Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça. — Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros. — Mas você é orgulhosa. — Decerto que sou. — Mas por quê? — É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu? — Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu? — Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados... — Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecen...

Saudação a Palmares - Castro Alves

Nos altos cerros erguido Ninho d'águias atrevido, Salve! — País do bandido! Salve! — Pátria do jaguar! Verde serra onde os palmares — Como indianos cocares — No azul dos colúmbios ares Desfraldam-se em mole arfar! ... Salve! Região dos valentes Onde os ecos estridentes Mandam aos plainos trementes Os gritos do caçador! E ao longe os latidos soam... E as trompas da caça atroam... E os corvos negros revoam Sobre o campo abrasador! ... Palmares! a ti meu grito! A ti, barca de granito, Que no soçobro infinito Abriste a vela ao trovão. E provocaste a rajada, Solta a flâmula agitada Aos uivos da marujada Nas ondas da escravidão! De bravos soberbo estádio, Das liberdades paládio, Pegaste o punho do gládio, E olhaste rindo pra o val: "Descei de cada horizonte... Senhores! Eis-me de fronte!" E riste... O riso de um monte! E a ironia... de um chacal!... Cantem Eunucos devassos Dos reis os marmóreos paços; E beijem os férreos laços, Que não ou...

Vozes d'África - Castro Alves

Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes Embuçado nos céus? Há dois mil anos te mandei meu grito, Que embalde desde então corre o infinito... Onde estás, Senhor Deus?... Qual Prometeu tu me amarraste um dia Do deserto na rubra penedia — Infinito: galé! ... Por abutre — me deste o sol candente, E a terra de Suez — foi a corrente Que me ligaste ao pé... O cavalo estafado do Beduíno Sob a vergasta tomba ressupino E morre no areal. Minha garupa sangra, a dor poreja, Quando o chicote do simoun dardeja O teu braço eternal. Minhas irmãs são belas, são ditosas... Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas Dos haréns do Sultão. Ou no dorso dos brancos elefantes Embala-se coberta de brilhantes Nas plagas do Hindustão. Por tenda tem os cimos do Himalaia... Ganges amoroso beija a praia Coberta de corais ... A brisa de Misora o céu inflama; E ela dorme nos templos do Deus Brama, — Pagodes colossais... A Europa é semp...

Magro, de Olhos Azuis - Bocage

Magro, de olhos azuis, carão moreno, Bem servido de pés, meão na altura, Triste de facha, o mesmo de figura, Nariz alto no meio, e não pequeno; Incapaz de assistir num só terreno, Mais propenso ao furor do que à ternura, Bebendo em níveas mãos por taça escura De zelos infernais letal veneno; Devoto incensador de mil deidades (Digo, de moças mil) num só momento, E somente no altar amando os frades; Eis Bocage, em quem luz algum talento; Saíram dele mesmo estas verdades Num dia em que se achou mais pachorrento.

Águas - Cyro de Mattos

Imagem
Águas do rio Cachoeira havia o fragor de espumas havia o verde nas vagas o lume do tempo sem faca o coração lúcido das águas haveria outras águas de perau e rocha as marcas decididamente acumuladas no leito do mistério a natureza impõe a deságua: no mar de meu sono triste sonho que me acordem essas águas MATTOS, Cyro de. Vinte poemas do rio . Ilhéus: Editus, 2001

Diante do Rio - Cyro de Mattos

Imagem
Mancha ao invés de espuma perau ao invés de remanso queda ao invés de mergulho dúvida ao invés de certeza lua muda ao invés de ave branca nessa tarde de brilho longínquo maduros janeiros em tuas águas ainda que me ocultes em tua fábula há em tua flor de água-pé a proposta livre da vida, canção de aurora riberinha no meu nado cristalino e afoito. MATTOS, Cyro de. Vinte poemas do rio . Ilhéus: Editus, 2001

As duas ilhas - Castro Alves

Imagem
Quando à noite — às horas mortas —O silêncio e a solidão — Sob o dossel do infinito —Dormem do mar n'amplidão, Vê-se, por cima dos mares, Rasgando o teto dos ares Dois gigantescos perfis... Olhando por sobre as vagas, Atentos, longínquas plagas Ao clarear dos fuzis. Quem os vê, olha espantado E a sós murmura: "0 que é? Ai! que atalaias gigantes, São essas além de pé?!..." Adamastor de granito Co'a testa roça o infinito E a barba molha no mar; É de pedra a cabeleira Sacudind'a onda ligeira Faz de medo recuar... São — dous marcos miliários, Que Deus nas ondas plantou. Dous rochedos, onde o mundo Dous Prometeus amarrou!... — Acolá... (Não tenhas medo!) É Santa Helena — o rochedo Desse Titã, que foi rei!... — Ali... (Não feches os olhos!...) Ali... aqueles abrolhos São a ilha de Jersey!... São eles — os dous gigantes No século de pigmeus. São eles — que a majestade Arrancam da mão de Deus. — Este concentra na fro...

As duas flores - Castro Alves

Imagem
São duas flores unidas São duas rosas nascidas Talvez do mesmo arrebol, Vivendo,no mesmo galho, Da mesma gota de orvalho, Do mesmo raio de sol. Unidas, bem como as penas das duas asas pequenas De um passarinho do céu... Como um casal de rolinhas, Como a tribo de andorinhas Da tarde no frouxo véu. Unidas, bem como os prantos, Que em parelha descem tantos Das profundezas do olhar... Como o suspiro e o desgosto, Como as covinhas do rosto, Como as estrelas do mar. Unidas... Ai quem pudera Numa eterna primavera Viver, qual vive esta flor. Juntar as rosas da vida Na rama verde e florida, Na verde rama do amor!

Soneto - Luís de Camões

Quem diz que Amor é falso ou enganoso, ligeiro, ingrato, vão, desconhecido, Sem falta lhe terá bem merecido Que lhe seja cruel ou rigoroso. Amor é brando, é doce e é piedoso; Quem o contrário diz não seja crido: Seja por cego e apaixonado tido, E aos homens e inda aos deuses odioso. Se males faz Amor, em mi se vêem; Em mim mostrando todo o seu rigor, Ao mundo quis mostrar quanto podia. Mas todas suas iras são de amor; Todos estes seus males são um bem, Que eu por todo outro bem não trocaria.

Quando eu morrer - Castro Alves

Imagem
Quando eu morrer... não lancem meu cadáver No fosso de um sombrio cemitério... Odeio o mausoléu que espera o morto Como o viajante desse hotel funéreo. Corre nas veias negras desse mármore Não sei que sangue vil de messalina, A cova, num bocejo indiferente, Abre ao primeiro o boca libertina. Ei-la a nau do sepulcro — o cemitério... Que povo estranho no porão profundo! Emigrantes sombrios que se embarcam Para as plagas sem fim do outro mundo. Tem os fogos — errantes — por santelmo. Tem por velame — os panos do sudário... Por mastro — o vulto esguio do cipreste, Por gaivotas — o mocho funerário... Ali ninguém se firma a um braço amigo Do inverno pelas lúgubres noitadas... No tombadilho indiferentes chocam-se E nas trevas esbarram-se as ossadas... Como deve custar ao pobre morto Ver as plagas da vida além perdidas, Sem ver o branco fumo de seus lares Levantar-se por entre as avenidas!... Oh! perguntai aos frios esqueletos Por que não têm o c...

Anúncio de João Alves

Figura o anúncio em um jornal que o amigo me mandou, e esta assim redigido: À procura de uma besta. - A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escura com os seguintes característicos: calçada e ferrada de todos os membros locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas seções em consequência de um golpe, cuja extensão pode alcançar de 4 a 6 centímetros, produzido por jumento. Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comércio, é muito mansa e boa de sela, e tudo me induz ao cálculo de que foi roubada, assim que hão sido falhas todas as indagações. Quem, pois, apreendê-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos notícia exata ministrar, será razoavelmente remunerado.Itambé do Mato Dentro, 19 de novembro de 1899. João Alves Júnior. Cinquenta e cinco anos depois, prezado João Alves Júnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido, já é pó no pó. E tu mesmo, se não estou...

Este Natal - Carlos Drummond de Andrade

Imagem
— Este Natal anda muito perigoso — concluiu João Brandão, ao ver dois PM travarem pelos braços o robusto Papai Noel, que tentava fugir, e o conduzirem a trancos e barrancos para o Distrito. Se até Papai Noel é considerado fora-da-lei, que não acontecerá com a gente? Logo lhe explicaram que aquele era um falso velhinho, conspurcador das vestes amáveis. Em vez de dar presentes, tomava­os das lojas onde a multidão se comprime, e os vendedores, afobados com a clientela, não podem prestar atenção a tais manobras. Fora apanhado em flagrante, ao furtar um rádio transistor, e teria de despir a fantasia. — De qualquer maneira, este Natal é fogo — voltou a ponderar Brandão, pois se os ladrões se disfarçam em Papai Noel, que garantia tem a gente diante de um bispo, de um almirante, de um astronauta? Pode ser de verdade, pode ser de mentira; acabou-se a confiança no próximo. De resto, é isso mesmo que o jornal recomenda: "Ne...

Tragédia no lar - Castro Alves

Na Senzala, úmida, estreita, Brilha a chama da candeia, No sapé se esgueira o vento. E a luz da fogueira ateia. Junto ao fogo, uma africana, Sentada, o filho embalando, Vai lentamente cantando Uma tirana indolente, Repassada de aflição. E o menino ri contente... Mas treme e grita gelado, Se nas palhas do telhado Ruge o vento do sertão. Se o canto pára um momento, Chora a criança imprudente ... Mas continua a cantiga ... E ri sem ver o tormento Daquele amargo cantar. Ai! triste, que enxugas rindo Os prantos que vão caindo Do fundo, materno olhar, E nas mãozinhas brilhantes Agitas como diamantes Os prantos do seu pensar ... E voz como um soluço lacerante Continua a cantar: "Eu sou como a garça triste "Que mora à beira do rio, "As orvalhadas da noite "Me fazem tremer de frio. "Me fazem tremer de frio "Como os juncos da lagoa; "Feliz da araponga errante "Que é livre, que livre voa. "Que é livre, que li...

A última crônica - Fernando Sabino

"A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, ...

Um cão apenas - Cecília Meireles

Imagem
          Subidos, de ânimo leve e descansado passo, os quarenta degraus do jardim – plantas em flor, de cada lado; borboletas incertas; salpicos de luz no granito – eis-me no patamar. E a meus pés, no áspero capacho de coco, à frescura da cal do pórtico, um cãozinho triste interrompe o seu sono, levanta a cabeça e fita-me. É um cãozinho doente, com todo o corpo ferido; gastas, as mechas brancas do pelo; o olhar dorido e profundo, com esse lustro de lágrimas que há nos olhos das pessoas muito idosas. Com grande esforço acaba de levantar-se.Eu não lhe digo nada; não faço nenhum gesto. Envergonha-me haver interrompido o seu sono. Se ele estava feliz ali, eu não devia ter chegado. Já lhe faltavam tantas coisas, que ao menos dormisse: também os animais devem esquecer, enquanto dormem...Eis, porém, levantava-se e olhava-me. Levantava-se com a dificuldade dos enfermos graves: acomodando as patas da frente, arrastando o resto do corpo, sempre c...

A mulher do vizinho - Fernando Sabino

Imagem
Na rua onde mora (ou morava) um conhecido e antipático General do nosso Exército, morava (ou mora) também um sueco cujos filhos passavam o dia jogando futebol com bola de meia. Ora, às vezes acontecia cair a bola no carro do General e um dia o General acabou perdendo a paciência, pediu ao delegado do bairro para dar um jeito nos filhos do vizinho. O delegado resolveu passar uma chamada no homem e intimou-o a comparecer à delegacia. O sueco era tímido, meio descuidado no vestir e pelo aspecto não parecia ser um importante industrial, dono de grande fábrica de papel (ou coisa parecida), que realmente ele o era. Obedecendo à intimação recebida, compareceu em companhia da mulher à delegacia e ouviu calado tudo o que o delegado tinha a lhe dizer. O delegado tinha a lhe dizer o seguinte: - O senhor pensa que só porque o deixaram morar neste país pode logo ir fazendo o que quer? Nunca ouviu falar num troço chamado autoridades constituídas? Não sabe que tem de con...

A canção do africano - Castro Alves

Lá na úmida senzala, Sentado na estreita sala, Junto ao braseiro, no chão, Entoa o escravo o seu canto, E ao cantar correm-lhe em pranto Saudades do seu torrão … De um lado, uma negra escrava Os olhos no filho crava, Que tem no colo a embalar… E à meia voz lá responde Ao canto, e o filhinho esconde, Talvez pra não o escutar! Minha terra é lá bem longe, Das bandas de onde o sol vem; Esta terra é mais bonita, Mas à outra eu quero bem! O sol faz lá tudo em fogo, Faz em brasa toda a areia; Ninguém sabe como é belo Ver de tarde a papa-ceia! Aquelas terras tão grandes, Tão compridas como o mar, Com suas poucas palmeiras Dão vontade de pensar… Lá todos vivem felizes, Todos dançam no terreiro; A gente lá não se vende Como aqui, só por dinheiro”. O escravo calou a fala, Porque na úmida sala O fogo estava a apagar; E a escrava acabou seu canto, Pra não acordar com o pranto O seu filhinho a sonhar! …………...